Venho por aqui falar de um grande amigo e fadista, José Maria Fernandes, que faleceu há uma semana. A nossa amizade foi criada juntamente com o fado, ou talvez seja melhor dizer que quanto mais que conhecíamos, mais que compreendi sobre o fado e a bondade que pode ser criado dentro do âmbito fadista. Quando vim com a minha família à Lisboa há alguns anos--sem saber nada do fado actual--foi ele que me introduziu ao mundo fadista que agora faz parte imutável da minha vida.
Na altura quando lá vivíamos, frequentávamos a Baiuca em Alfama. Pouco a pouco, eu ia conversando com os fadistas, os músicos e as outras pessoas que por ali passavam. Gostei de ouvir o José Maria cantar, mesmo que os clientes conversassem tanto durante o fado. O José Maria cantava os clássicos, os fados associados com os fadistas que ele apreciava mas que se encontrou fora da moda, como o Fernando Farinha ou o Tony de Matos. Ele cantava de amor e de solidão. Era romântico, sem desculpas.
Comigo não queria falar da sua vida privada. Um dia perguntei-lhe" "Aonde trabalha?" Respondeu enigmaticamente: "Trabalhava em Alcântara..." Percebeu perfeitamente o que eu tinha perguntado, mas não queria entrar no assunto, nem me ofender. Para muito tempo, só sabia que era "da outra banda."
Ele vadiava de casa em casa em Alfama, uns dias por semana. Encontrei-o muitas vezes na Baiuca, e anos depois também frequentava o Sr. Fado. Como muitos outros fadistas, não queria ganhar dinheiro, só queria era cantar e conversar com amigos durante os intervalos ou quando esperava por sua vez. Fomos uma vez a um território distante–a Graça–para visitar a Tasca do Jaime. Pôs-se em pé, introduziu-se com humildade, agradeceu a dona, depois cantou dois fados do coração. Gostou, mas percebi que o seu povo, e os seus lugares de hábito, eram todos de Alfama. Por outro lado, sempre ia conosco por qualquer lado: às outras casas de Alfama, à Mouraria.
A manter a ordem à porta da Baiuca |
Uma vez telefonei-o, e atendeu ao telefone bruscamente, como sempre. "Ó Zé, aonde está?" Estava na casa do Sr. Henrique, no sul do país. "A fazer o que?" perguntei eu. A ajudar nisto ou naquilo, depois ele ia regressar à noite para trabalhar no dia seguinte. Outras vezes, estava indo para Angola. Sempre a vadiar...
Queria que nos fôssemos portugueses: eu, a minha esposa, e os meus filhos. Ajudou-me com a burocracia portuguesa, inventou planos fantásticos para que eu conseguisse manter uma presença permanente em Portugal ("compre um apartamento", "troque o seu trabalho", etc.). Fizemos percursos de pê e de carro por várias zonas de cidade. Não era jovem, mas andou sempre velozmente, cheio de vontade para chegar.
Uma vez que visitamos Lisboa, queria buscá-nos no aeroporto. Disse-me que tinha um carro que servia. Não acreditava. "Cabe, cabe. Não se preocupe", respondeu o meu amigo. Chegou com um Citroën antiquíssimo, que não foi nada grande. Mas ele não queria saber nada das minha dúvidas. De uma magia qualquer, conseguiu meter tudo lá dentro--cinco pessoas e todas as malas. Depois da visita, ao regressar ao aeroporto, ofereceu-me uma caixa de discos do fado. Não o queria, mas disse "Trago sempre uma commigo, e vou dando-a quando me apetecer, depois compro mais uma." Assim, o fado e ele andava sempre a par.
Quando eu estava fora de Portugal, telefonava-o por Skype, e por isso ele não reconhecia o número. Quando atendeu ao telefone, dizia "Alô", duma maneira brusca, que transmitiu uma mensagem clara: "Como é que vais explicar esta intrusão?" Eu respondia, "Ó José Maria, é David Mendonça." "Ó David, como está amigo!" E depois era tudo alegria. Mesmo na rua, eu nem sempre percebia quando ele sentia pró ou contra alguém, pois resmungava à frente de todos.
Na Tasca do Jaime |
O José Maria vivia com o fado sempre no peito. Quando falávamos, às vezes exprimia os seus sentimentos em termos fadista, sem pretensões e como se fosse a sua própria linguagem. Queria ensinar-me toda a história do fado que conhecia, a qual assisti com toda a minha atenção. Introduziu-me ao mundo ocupado por aquelas pessoas que vivem para o fado, e não através do fado. O fado do José Maria era um fado puro, que refletia uma sensibilidade profundamente humana, cheia de honestidade, e que não aceitou a falsidade.
A última vez que o vi foi recentemente. Estávamos em Lisboa para uma curta visita. Já tinha percebido que não estava bem. Falamos brevemente por telefone, mas foi preciso confirmar os pormenores com a filha dele. (Logo descobri que ele sofreu bastante só para lá chegar.) Estava sentado à porta da Baiuca, com muitos amigos ao seu redor. "Vou cantar" disse ele. A filha protestou, também eu. "Quero." Pediu desculpas da minha esposa por não ser capaz de cantar "Leio em teus olhos", que sempre cantava para ela. Ia cantar outra coisa, então pôs-se de pé. Num instante, a Baiuca e tudo que não era o meu amigo evaporou. Cantou "Senhora da Nazaré" do fundo da alma, com toda a força da vida, com muito mais força do que o corpo tinha. Depois saiu subitamente: estava gasto. Depois falamos para uns minutos, mas foi a última vez que o vi. Era tudo pelo fado, e tudo por amizade.